Morrer é a paz que, a nós, nunca nos demos

Ao lado da minha amada
Oiço um breve ressonar
Sono profundo, sonhos mudos
Neste silêncio que não se
(pode escutar.)

Lá fora os patos grasnam como pessoas acabadas de assaltar.
Tão bom aquele hiato de tempo entre os pingos da chuva.
O silêncio é…
“silêncio é a presença do nada” e a ausência de tudo aquilo que não queremos mais (escutar).
As pessoas não gostam do silêncio e a naftureza do vazio.
Caímos em abismos, redemoinhos.

Uma vez sonhei com uma folha em branco, no minuto antes de acordar.
Eu era uma folha em branco. Vazio. Vazia. O corpo dela era branco. Vazio. Precisava daquele corpo para poder ecoar a minha voz. Paguei a uma mulher para me tirar de vez do vazio. Apenas por aquela hora.
A puta dançava, fazendo soar o seu corpo contra os objetos. Ora em cima da mesa. Sapatos amarelos. Ora pelo chão.  Objetos. Um sapato sem tacão.
Copo meio vazio à espera do silenciar dos olhos de quem o segura.
Falava, balbuciava, palrava, gemia… As vozes são canções de embalar.
Regressei ao silêncio após €150. Aquela língua era de luxo.
Confiei no seu silêncio porque sei que tudo esquece.
Uma vez paguei a uma prostituta da fala para que acabasse com o meu silêncio.
Uma cadeira vazia é uma mulher sem voz.
Apenas com pernas e costas.
Sabor com pouco brio. Pouco tempo entre barris de madeira de carvalho. Pouco tempo a fermentar.
Desmaio. Já lá não estás.

Deitados nesta cama, neste escuro mudo… lamento.
Sinto que devia contar-te… ou abrir buracos numa parede,
buracos na parede onde enfiamos pequenas mensagens em papel, na esperança que alguém os encontre. E desembrulhados, quais rebuçados flocos de neve, sairão berros e entranhas escondidas de outra época. Lamentos passados, de uma geração passada, sem sentido, sem ligação à História.  Apenas abismos, redemoinhos, preocupações tão egoístas, de eu, eu e mais eu e apenas eu.

Onde há vida não há silêncio.
Uma barriga que ronca.
Onde há vida, não há silêncio.
O silêncio é um corpo morto, em decomposição.
E ao lado da minha amada
Oiço um último respirar.

Ovar, cidade ainda por construir

                                                   (orwo wolfen nc500 + fuji stx2 + rev.dig. Sagrada Película)

                                                     (fuji super hg 200 (exp.1991) + canon a1 + epson v330)

22.06.02-03.33.26.07.19-19.34.

Acabo por me deitar,
aqui,
na cama do cansaço.
Nunca tive um déjà vu,
mas este cansaço nunca foi o primeiro.
Recolho-me.
E espero pelo sossego que já se estende por entre os lençóis que me cobrem.
Espero o momento de partir.
Um sonho embala-me e deixo-me ir
com se fosse um bebé.
Sou grande demais para pedir colo… sou grande demais.
Por isso, apenas sonho.

Acordo.
A chuva lá fora. A buzina do carro do homem do pão. As crianças no recreio. O comboio que passa. O sol que insiste em não aparecer. Uma dor no peito.
Quem me dera ter continuado a sonhar.


(texto perdido em 2003. encontrado e revisto em 2019)